Responsável pelo homicídio, cometido em 1994, entrou com recursos e conseguiu ficar em liberdade até a prescrição do crime
O final de um processo criminal envolvendo um médico, um vigilante e um assassinato fez, mais uma vez, ecoar o debate sobre a impunidade e a justiça. Durante a semana, o tema esteve presente nas conversas entre amigos e nas redes sociais. O joinvilense tentava buscar respostas para o fato de um crime de homicídio terminar com o condenado cumprindo apenas quatro dias de prisão. Houve justiça? É a pergunta que ecoa na cabeça de muita gente.
O caso ocorreu na madrugada do dia 19 de junho de 1994, no estacionamento do Hospital Municipal São José de Joinville. O então médico residente, hoje ortopedista e traumatologista Rolf Praetzel Schaurich, hoje com 49 anos, voltava de uma boate para pegar seu carro no estacionamento da unidade e ao discutir com os vigilantes sacou um revólver e matou o vigia Renato Coutinho do Prado, 29. Schaurich fugiu, se apresentou dias depois com advogado e, de recurso em recurso, conseguiu gozar da liberdade até a prescrição do crime.
Para a juíza da 1ª Vara Criminal do Fórum de Joinville, Karen Francis Schubert Reimer, crimes de homicídio deveriam ter prazo diferenciado para prescrever. A magistrada é responsável por presidir as sessões do Tribunal do Júri que julgam crimes contra a vida. Na época em que o médico foi condenado, ela ainda não estava à frente da 1ªVara, mas foi ela quem deferiu o pedido de prisão contra Schaurich, solicitado pelo promotor de justiça Ricardo Paladino, em março deste ano.
Para a magistrada, a justiça não surtiu efeito neste caso, em razão da decretação da prescrição. “Em primeiro lugar, a lei é muito complacente. Um crime de homicídio deveria ter um prazo diferenciado. Em alguns países, como nos Estados Unidos, sequer existe prescrição para este tipo de crime. Observamos também que o excesso de recursos impede a aplicação da lei de forma adequada”, pontua Karen.
Ela cita que, no caso do crime praticado por Schaurich, ele foi condenado pelo Tribunal do Júri há 13 anos e depois toda a tramitação foi em cima de recursos. “O recurso ao Tribunal de Justiça foi julgado em 2005, há mais de 11 anos. Os demais recursos foram todos em Brasília, no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Ou seja, a prescrição foi reconhecida pelo STJ em razão do tempo que o processo ficou em Brasília, para julgamento de vários recursos interpostos pela defesa”, explica a magistrada.
Para Karen, a grande evolução que ocorreu para que situações parecidas não se repitam foi a mudança de entendimento do STF (Supremo Tribunal Federal), que reconheceu a possibilidade de prisão após a decisão do Tribunal de Justiça. “Assim, mesmo que o réu entre com vários recursos ao STJ e STF, a prisão pode ser decretada pelo juiz de 1º grau. Quando ocorreu a mudança de entendimento, o Ministério Público requereu e eu decretei a prisão do réu, de forma fundamentada. Infelizmente, o desfecho não foi o esperado”, lamenta.
Prazos processuais
Na visão do advogado e professor doutor de direito penal e criminologia da Univille, Leandro Gornicki Nunes, este caso poderia ter tido final diferente. Bastaria que os prazos processuais destinados à prática de atos pelo poder público fossem respeitados, sendo pouco frequentes as situações em que a prescrição ocorre envolvendo homicídio.
Quanto à prescrição, ele explica que há prazos diversos e proporcionais às penas máximas cominadas (impostas) para cada tipo de crime. “A prescrição deve ocorrer para evitar que os acusados passem a vida inteira sob a ‘espada de Dâmocles’ (insegurança, pressão) e possui fundamentos vinculados à produção de provas e à função da pena criminal.”
O professor pondera, no entanto, que se os papéis fossem alterados provavelmente o vigia teria sido efetivamente punido. “O funcionamento do sistema de justiça é seletivo, dando preferência por castigar os mais débeis em termos econômicos, políticos ou midiáticos”, sublinha.
Sobre os recursos que mantiveram o médico solto,Nunes explica que não é justificativa para a morosidade da máquina judiciária. “Eles existem para depurar eventuais falhas na interpretação da prova processual ou na interpretação do direito. O objetivo é evitar erros judiciários. Eles não podem ser o ´bode expiatório´ dos casos de prescrição, cujos prazos são elevados. No caso de um homicídio, considerando a pena abstratamente cominada, o prazo será de 20 anos, e, em concreto (seis anos no mínimo), a prescrição ocorrerá em 12 anos”, ensina.
“A Justiça não é a mesma para todos”, diz promotor
A extinção da culpabilidade do médico condenado por matar o vigilante gerou indignação e frases ásperas do promotor Ricardo Paladino. Em manifesto anexado ao processo,ainda na segunda, assim que soube que o médico seria solto, Paladino lamentou a forma com que o caso foi encerrado, afirmando que esta situação demonstra que a justiça não é a mesma para todos. “Revelo o meu sentimento de mais profunda impotência diante do trâmite deste processo, notadamente em face da estratégia utilizada pela defesa para postergar o cumprimento da pena. Décadas se passaram desde a data do crime e o assassino, mesmo condenado pelo Júri Popular, permaneceu em liberdade, ignorando o cumprimento da pena que lhe foi imposta. Fosse o contrário, invertidos os papéis da vítima e do autor do homicídio, tenho convicção que o vigilante não teria a mesma sorte e há muito teria resgatado sua prisão no cárcere”, escreveu.
Ironicamente, no mesmo dia em que Paladino divulgou seu desabafo, era registrado na cidade um crime em que um vigia assumia o papel de assassino e matava o cliente da agência financeira em que trabalhava. Ele foi preso em flagrante e já está no presídio.
Paladino também lembra a contradição entre a dor do sentimento de impunidade da família e o desfrute da bem sucedida estratégia de defesa, que livrou o réu do cumprimento da justa punição. “Para a sociedade, por fim, a certeza de que a lei não é aplicada da mesma forma para todos.”
Na segunda, depois de seu manifesto, Paladino se encontrou pela primeira vez com a filha do vigilante assassinado, Ana Paula do Prado Corrêa, 26. Ao dar a notícia de que o médico que matara o pai dela agora era um homem livre, o promotor chorou e teria dito à filha da vítima que em sua carreira nunca tinha visto tal situação.
“A gente não se conhecia, não sabia que aqui em Joinvile ainda tinha alguém lutando para que a justiça fosse feita.Nossa conversa foi breve, mas emocionante. Lembrou do promotor trêmulo, muito indignado com o fato de o médico ter sido solto. Ele olhou nos meus olhos, pediu desculpas e disse que em toda sua trajetória profissional nunca tinha passado por tal situação. Ele me disse que a obrigação dele era fazer que com que a Justiça fosse feita, mas neste caso a própria Justiça falhou e que não havia mais nada que pudesse ser feito. Nos abraçamos e choramos juntos”, detalha Ana Paula.
“Crescemos ouvindo que meu pai era um homem bom”
Quando o pai de Ana foi assassinado, ela tinha apenas quatro anos. Hoje com 26, casada, mãe de duas meninas e à espera do terceiro, que se chamará Renato em homenagem ao avô, ela ainda sofre com a ausência pai. “Minhas lembranças são como fotografias. Recordo de um pai carinhoso, atencioso, que sempre ao voltar do trabalho trazia um doce para a gente.Lembro de uma família feliz, minha irmã [Renata Coutinho do Prado, 22] acabara de nascer, tinha 45 dias, tudo parecia muito bom. Renata nem conheceu meu pai. Ela e eu crescemos ouvindo todos dizerem que Renato Coutinho do Prado era um homem bom. Vivia para a família”, reafirma.
Desde a adolescência, ela trava uma verdadeira batalha em busca de justiça para o pai. “Hoje não posso agradecer a ele pelos doces que me trazia, não posso retribuir, cuidar do meu pai como ele cuidou de mim. Por isso, minha luta sempre foi para que a morte dele não fosse esquecida, que o responsável em tirar meu pai de mim fosse punido. É triste saber que, apesar deste médico ter sido condenado, ele nunca vai pagar pelo crime. É lamentável ver que a Justiça não vê as manobras para enganá-la”, acrescenta.
Ana recorda das dificuldades que a ausência do pai proporcionou à família. “Éramos pobres. O pouco que meu pai ganhava ajudou a construir parte desta casa. Minha mãe se virou para colocar comida na mesa. Ela sofreu muito. Passar por tudo que passamos, não é justo”, lamenta.
Sentada ao lado da mãe, Sônia Maria de Azevedo, 45, e da irmã,Ana olha uma das poucas fotos que restaram do pai, que não gostava de tirar fotos. Acaricia a barriga e confirma que seu menino Kauê Renato está a caminho.
Luta para conseguir sustento da família
Desde quando Prado foi assassinado, a viúva Sônia Maria de Azevedo precisou se desdobrar para dar conta de sustentar as duas filhas. Segundo Ana, o médico Rolf Praetzel Schaurich foi aconselhado por advogados a ajudar a família. “Por dois anos, ele fez depósitos no valor do salário que meu pai ganhava, mas depois do julgamento parou de contribuir. Foram tempos difíceis, tanto no lado emocional quanto no financeiro”, comenta Ana.
Por diversas vezes, ela tentou contato com o médico. “Não queria dinheiro, queria conversar, esperava um pedido de desculpas, um arrependimento, mas isso nunca aconteceu. Hoje, movemos processo de danos morais contra ele, já ganhamos na primeira instância, mas ele continua recorrendo. Esta indenização servirá para dar um conforto a mais para minha mãe. Mas se um dia tivesse de escolher entre indenização ou ver Rolf na cadeia, certamente optaria por colocá-lo na prisão”, finaliza.
Médico volta a atender normalmente
Desde quando o caso veio à tona, com a prisão do ortopedista Rolf Praetzel Schaurich, a equipe de reportagem do Notícias do Dia vem tentando conversar com a família do médico, mas ela se recusa a se manifestar sobre o caso. Na clínica onde o profissional atua, juntamente com outros oito médicos, Schaurich já estava atendendo no último dia 29.
O direito e a Justiça aos olhos de um jovem estudante
Matheus de Lucas Theis Poerner, 18, que está no primeiro semestre de direito da Univille, admite que entrou para o curso porque percebeu que muitos assuntos que norteiam nossa vida o tempo todo dependem do direito e não temos o conhecimento suficiente para saber o que é certo e o que é errado. “Conhecendo e respeitando as leis podemos exercer plenamente nossa cidadania e ter um convívio melhor na sociedade.” Sobre o caso do médico, Matheus enxerga injustiça, mas enquanto estudante de direito lembra que a Constituição preza pelo princípio de liberdade e que o direito sempre parte do pressuposto de que a pessoa é inocente. “Busco me formar com qualidade para exercer um cargo público (juiz) e fazer coisas certas”, finaliza.
Relembre o caso
O assassinato aconteceu em 19 de junho de 1994, no estacionamento do Hospital Municipal São José de Joinville. Era final de uma madrugada animada para o médico ortopedista Rolf Praetzel Schaurich, hoje com 49 anos. Após ir a uma boate nas proximidades do hospital, ele retornava para o estacionamento da unidade de saúde onde tinha deixado seu carro. Houve uma discussão entre o médico e dois vigilantes do hospital, que advertiram o profissional. Segundo o processo, Rolf Schaurich acabou sacando um revólver e atirou contra o vigia Renato Coutinho do Prado, na época com 29 anos. Ele morreu no local, deixando esposa e duas filhas pequenas, uma com quatro anos e outra com 45 dias de vida.
O caso teve grande repercussão na Joinville da década de 90. Rolf acabou indiciado, foi levado a Júri Popular e condenado a oito anos e seis meses de prisão, mas teve o direito de recorrer da sentença em liberdade. Ele mudou-se para a cidade de Guaporé, no Rio Grande do Sul, e desde então vinha recorrendo da condenação.
O processo passou pelo Tribunal de Justiça, e a condenação foi mantida, mas o desembargador que julgou a questão acabou reduzindo a pena do ortopedista para seis anos e seis meses. Depois disso, a defesa, ou melhor as defesas, de Schaurich recorreram mais uma vez, agora ao STF (Supremo Tribunal Federal) e STJ (Superior Tribunal de Justiça). Anos se passaram e, enquanto aguardava as apelações junto ao judiciário, o médico seguia em liberdade.
No início do ano, um novo entendimento por parte dos ministros do STF autorizou a prisão de condenados que recorriam da sentença na segunda instância e fez com o que o promotor do Ministério Público de Santa Catarina, Ricardo Paladino, pedisse a prisão de Rolf Schaurich. Ele foi preso na quinta (23). Um dia depois, um dos recursos impetrados pela defesa no STJ em 2014, o qual pedia a prescrição da culpabilidade, foi julgada e aceito pelo ministro Ribeiro Dantas. Desta forma, o médico foi colocado em liberdade, e o processo, extinto.
Na prática, segundo o próprio advogado que representa o médico, Paulo Fayet, é como se Rolf tivesse cumprido toda a pena. Ele só ficou quatro dias preso porque a defesa não conseguiu levar a decisão do STJ ao cartório do Fórum de Joinville, para que a médico fosse colocado em liberdade, o que só aconteceu na segunda (27).
FONTE: Portal ND Online